domingo, 24 de fevereiro de 2008

JOSÉ ALBERTO BRAGA – CINTO QUE NÃO SINTO

Com a devida vénia, transcrevo este magnífico trecho deste meu Bom Amigo:

Alguns anos atrás, em Campolide, Lisboa, onde moro, deparei-me com um homem de certa idade, a coxear e a tentar driblar a chuva e a ventania. Como no poema de Fernando Pessoa, eu iria adiante, ele passaria também no sentido contrário, e nunca haveria um registo do transeunte anónimo que enfrentava a sua circunstância, ou seja, um quase fim de vida a arrastar-se dolorosamente pela rua. Mas não foi assim, porque assim não quiseram os fados da história. Ele, ao passar, disse-me num tom que adivinhei filosófico:
– Sinto... a arrastar.
Ora, o que dizer a um companheiro de viagem da vida? Pois se ele mesmo me oferecia a constatação e a sentença a que estava destinado a cumprir... A partir dali, a vida seria para ele o seu próprio degredo. Sim, essa vida que, boa ou má, dela já tinha devorado todo o miolo, essa mesma vida que agora o empurrava pela escada abaixo da existência, numa queda vertiginosa que não permitia qualquer inflexão.
Medi o homem e a situação. E pensei em rematar a conversa com uma velha frase que diz tudo e não diz absolutamente nada.
– Eu sei, é a vida!
O ancião não ficou satisfeito com a minha filosofia de pacotilha. Provavelmente adivinhou-me um homem das letras, ou coleccionador delas, e voltou a espicaçar-me:
– Sinto... a arrastar.
Pela segunda vez, a enfrentar o seu Gólgota, o homem atirava-me a frase. Desta vez não a entendi como uma exacerbação filosófica, mas sim como uma chicotada verbal contra a minha notória insensibilidade. Se o homem ali estava, depois de anos e anos na dança do vira da vida, era justo que o seu interlocutor revelasse alguma atenção, um gesto de contrariedade frente às agruras vergastadas pelo tempo, um braço de apoio ou ainda, quem sabe?, uma lágrima fortuita a balançar solidariedade no canto do olho.
Mas não, com os diabos. Eu estava num daqueles dias pessoanos. Doía-me a alma, a metafísica, e a chuva rolava irremediavelmente concreta a fazer cócegas irritantes no meu lado menos solidário. Abri os braços num comentário visual do como quem diz: o que se há-de fazer? Julguei-o suficiente e avancei na rua a querer sair do filme daquela situação. Logo percebi que não me safava assim tão rapidamente. Desta vez o homem usou de toda a energia e ênfase de que foi capaz para fazer perceber o meu equívoco – Meu amigo, não falo de mim. O que sinto não tem nada com o que lhe quero fazer entender. Cinto... a arrastar. O cinto da sua gabardina está a arrastar, compreendeu?
Fiquei mudo e estático. Durante uma fracção de segundo senti uma espécie de inversão dos papéis, já que eu, sim, fora o velho e coxo desta história, porque sublinhara a minha rigidez e insensibilidade, enquanto o meu interlocutor brandira a velha solidariedade humana.
Eu apenas respondi com a humildade possível que a situação requeria:
– Sinto muito... e recolhi alguns centímetros de um cinto arreliador que teimava em banhar-se na chuva e na lama na rua onde moro.
Ainda um comentário: esta é a nossa língua, diversa, plena de signos, com um sem-fim de multiplicidades. E, por vezes, deliciosamente trocadilhesca, a permitir um equívoco existencial como este que acabo de narrar.
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Já agora, tenho o privilégio de dar a conhecer o seu currículo:
José Alberto Braga (JAAB) nasceu em Braga, Portugal, no dia 17 de Janeiro de 1944. Aos 15 anos emigrou para o Brasil na qualidade de “trabalhador agrícola”, actividade que nunca exerceu. No Rio de Janeiro, durante cerca de 25 anos, foi trabalhador de farmácia, office boy, bancário, bibliotecário e finalmente jornalista. Depois de passagem pelos jornais do meio português no Brasil, foi colaborador do suplemento “Idéias”, do Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa e revista “Vozes”. Trabalhou como redactor do programa “Portugal sem Passaporte”, exibido na extinta TV Tupi e na TV Bandeirantes (1973-75), programa por duas vezes premiado pela crítica brasileira. Em 1974, é licenciado em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Inicialmente como colaborador, a convite de Millôr Fernandes tornou-se redactor de “O Pasquim” (1978-79), assinando à época sob o pseudónimo de “JAAB”. Também trabalhou em diversos programas de rádio no Rio de Janeiro. Em 1982, regressa a Lisboa na qualidade de correspondente do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro, actividade que exerce até hoje. Nesse mesmo jornal, durante dez anos e a partir de Portugal, manteve uma coluna diária sobre acontecimentos portugueses e luso-brasileiros. Ao longo dos últimos 20 anos, tem sido colaborador do “Diário de Notícias”, “Público”, “Jornal de Letras” e “TV Guia”, em Lisboa. É frequentemente convidado a participar de programas da televisão portuguesa – RTP e SIC – na qualidade de comentarista de assuntos luso-brasileiros (telejornais e programas de actualidade, como “Acontece”, “Sinais do Tempo” e outros). Ainda como correspondente da imprensa brasileira, presidiu a “Associação de Imprensa Estrangeira” em Portugal (1987/89). Foi vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa (1993/94). Também em Lisboa, por sugestão do embaixador José Aparecido de Oliveira, elaborou a publicação “Guia Brasil”. Foi criador e director da revista “Lusofonia” (1997). Actualmente, é director e orientador editorial da Editora Mensagem (Lisboa).

Livros publicados: “As treze pragas do século XX”, editora Folhetim, Rio de Janeiro, 1976, prefácio de Millôr Fernandes.“Tira a mãe da boca”, Codecri (editora de “O Pasquim”), Rio de Janeiro, 1980, prefácio de Jô Soares.“Como passar no vestibular sem fazer força”, editora Marco Zero, Rio de Janeiro, 1988. (*)“O guia da sobrevivência política”, ilustrações do cartoonista português António, editora Pergaminho, Lisboa, 1991.“Fábulas imorais”, editora Pergaminho, Lisboa, 1995.“Breviário de assuntos inúteis”, Trinova, Lisboa, 1998.“O caçador de étês”, Trinova, Lisboa, 2001.“Pensamentos & Reflexões”, editora Mensagem, Lisboa, 2002, ilustrações de Casimiro Barreto. (*) Os três primeiros livros foram publicados sob o pseudónimo de JAAB

Biografias: “Os olhos da Alma – a Vida de Manuel Madruga”, Trinova, Lisboa, 1999.“José Aparecido – o Homem que Cravou uma Lança na Lua” Trinova, Lisboa, 1999.

Teatro do autor: “O Mistério do Queijo Desaparecido”, peça infantil encenada no ClubeGinástico Português do Rio de Janeiro, 1973.“A Funerária”, peça de humor negro, 1980.“Purpurina’s Bar”, peça irónico-existencial, 2000. Texto remetido pelo autor ao Releituras, extraído do livro “Pensamentos & Reflexões”, Editora Mensagem, Lisboa, 2002.

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