Iniciar este projecto com a publicação de um artigo adequado e actual, editado em 2011 (aquando dos 50 anos da invasão do território), é, sem dúvida, um bom começo.
Assim, com a devida vénia, a seguir se transcreve a opinião abalizada do Jornalista Pedro Guerreiro, o qual, na altura militava no jornal "O Sol":
Como Salazar perdeu a Índia
Um certo Portugal começava a ruir há 50 anos. A 22 de Janeiro de 1961, um comando liderado por Henrique Galvão tomava o paquete português Santa Maria. A 4 de Fevereiro, o MPLA atacava a cadeia de Luanda e ateava o rastilho para a guerra de libertação de Angola. Um mês e onze dias depois, a UPA matava e esquartejava mais de 800 pessoas no Norte. Entre Março e Abril, o ministro da Defesa, Botelho Moniz, tentava e falhava um golpe palaciano para afastar António de Oliveira Salazar do poder.
As eleições legislativas de 10 de Novembro, manipuladas, são precedidas de intensa agitação. Dois dias antes, um voo da TAP que ligava Casablanca a Lisboa era tomado por opositores do regime que lançaram milhares de panfletos sobre a capital e o Sul do país. Na véspera da votação, um grupo de militantes comunistas foge de Caxias num carro de Salazar. Seguir-se-ia o assalto ao quartel de Beja.
Mas era longe da metrópole e de África que o Portugal colonial iria sofrer, ainda em 1961, a sua primeira amputação. A história da queda do Estado Português da Índia tornar-se-ia paradigmática do autismo do regime perante pressões internas e alterações externas. E tornar-se-ia uma história sobre como se conta uma história: como se quiser contar.
Índia pouco portuguesa
Goa, Damão e Diu. Gerações memorizaram estas três palavras como pedaços de um Portugal que ia do Minho a Timor. Capítulo inquestionável da história lusa no Oriente, a portugalidade do Estado da Índia era, no entanto, dúbia.
Segundo o censo de 1940, dos seus 624.177 habitantes, apenas 1.371 eram descendentes de portugueses. Um terço professava a fé católica, mas apenas 1,1% da população falava português. «Goa não é uma província portuguesa», concluía à data o diplomata espanhol Juan Carlos Jiménez, citado em Xeque-Mate a Goa, o livro da investigadora Maria Manuel Stocker que conta a verdadeira história do fim da presença portuguesa na Índia. «Goa tem todo o aspecto de uma colónia.
Uma minoria portuguesa ocupa os postos fundamentais, secundados por uns poucos goeses. Existe uma pequena classe média comercial, geralmente hindu ou muçulmana, e o resto da população é simplesmente a típica massa amorfa da Índia, apática, faminta, doente, totalmente indiferente e ignorante de problemas que não sejam os de resolver o milagre diário da alimentação», sentenciava.
Vizinha da União Indiana, que conquistara a independência do Reino Unido em 1947, a Índia Portuguesa, pouco industrializada e de parca capacidade agrícola, dependia economicamente do outro lado de uma fronteira porosa. Goa, Damão e Diu, argumenta Stocker, faziam geográfica, social, cultural, linguística e religiosamente parte da vizinha Índia, não tinham valor nem na economia nem na demografia portuguesas e eram sobretudo fonte de encargos.
Mas, na metrópole, a narrativa era outra – a de que Goa era e queria continuar a ser portuguesa. Contava o Século Ilustrado de 29 de Março de 1947 que, contra «vozes vindas da Índia inglesa» que clamavam o fim da presença lusa, «a população em espectaculosas manifestações pediu que Goa permanecesse portuguesa». O ajuntamento era organizado pelo regime.
Fracasso diplomático
Desde a independência que a Nova Deli de Jawaharlal Nehru reclamava a integração da Índia Portuguesa na União Indiana. Era um imperativo ideológico e nacional. Lisboa, por seu turno, queria preservar a integridade da república unitária e evitar um precedente em relação às restantes colónias. Para o efeito, Portugal alterou em 1946 a designação de ‘colónia’ para ‘província ultramarina’, estreando a Índia Portuguesa o novo estatuto.
Tropas landins em Goa, creio eu. Vinham de Moçambique.
O conflito era inevitável e o contexto seria favorável à Índia. A Inglaterra, tradicional aliada de Portugal, deixara de ser o fiel da balança internacional. Londres, interessada em manter boas relações com Nova Deli, não mais poderia mediar conflitos num mundo polarizado entre Estados Unidos e União Soviética. Washington e Moscovo eram anticolonialistas e o mesmo carácter tinha a recém-criada Organização das Nações Unidas. Todos cortejavam a Índia.
A contenda foi inicialmente diplomática. Como para romper relações seria necessário estabelecê-las primeiro, portugueses e indianos encetaram laços formais em 1949 – Nova Deli quebrou-os em 1953, perante a ausência de diálogo sobre Goa. A questão internacionaliza-se depois, com intervenções de Nehru na ONU e nas conferências dos países não-alinhados. Salazar mobiliza a diplomacia lusa para uma ofensiva mediática junto dos países aliados. O argumentário centrava-se em três pontos: que a Índia Portuguesa fazia parte da nação há 450 anos, que o regime não discriminava raças ou credos e, por fim, que Goa era um posto avançado na luta contra o comunismo.
Mas os argumentos não colhem. Ignorado por Londres, Washington e a Santa Sé, condenado pela ONU, o regime explorou soluções alternativas para a questão de Goa, alvo de um bloqueio económico e de acções de desobediência civil. Muitas ponderadas à porta fechada, porque questionavam princípios sagrados do Estado Novo. Francisco da Costa Gomes, subsecretário de Estado do Exército, propõe a Salazar em 1960 a realização de um referendo. Questionado sobre um possível veredicto, responde ao Presidente do Conselho: «Se tivermos entre 7 e 10% dos votos a favor podemos considerar que a nossa acção na Índia foi uma soma muito positiva. Porque a Índia não é portuguesa». Exploraram-se contactos secretos com o Paquistão e mesmo com a China comunista, a quem seria oferecida uma base naval.
Batalha ficcionada
Nos anos de 1960 e 1961, a ameaça da guerra em África leva o regime a desinvestir na Índia. Os 12.000 militares que nos anos 50 defendiam o território passam a 3.500. Para Nova Deli, é o momento de agir. Lisboa conhecia os planos de invasão desde o Verão de 1961, mas em vez de um reforço militar optou por nova ofensiva mediática centrada na vitimização de uma pequena nação perante um inimigo pró-soviético. Salazar previa uma «heroica defesa» de portugueses e goeses. Mais do que prever, exigiu-a por telegrama ao governador Manuel António Vassalo e Silva, recomendando um «sacrifício total» e declarando que «pode haver apenas soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos». Lisboa transportou para Goa jornalistas portugueses e estrangeiros. Seriam observadores independentes do sacrifício português, mas acabaram por testemunhar algo totalmente diferente.
A guerra estala na manhã de 17 de Dezembro de 1961 com a morte de dois soldados portugueses em Maulinguém. É decretada a mobilização de todos os militares no activo residentes em Goa, mas apenas um tenente miliciano se apresenta às autoridades. Era o prenúncio do desaire. À meia-noite do dia 18, a Marinha e a aviação indianas iniciam o bombardeamento de posições estratégicas e dão cobertura à entrada de 45.000 soldados em território português. A aviação lusa era ali inexistente e as forças navais incapazes de responder ao fogo inimigo. Um pelotão de artilharia antiaérea português chegara na noite anterior, no último voo para Goa, disfarçado de equipa de futebol, para tomar posições no aeroporto de Dabolim. Encontram armamento do início do século e munições inutilizadas pela humidade.
As forças portuguesas em Goa anteveem o avanço rápido dos indianos e chegam a ponderar um golpe para decretar a rendição do território. Os oficiais acabam por optar por uma resistência mínima com o disparo de «uns tiros simbólicos». Assim sucede, com a excepção de episódios isolados como a batalha do Afonso de Albuquerque, navio que resiste a dois cruzadores, um contratorpedeiro e cinco fragatas, ou o sacrifício do segundo-tenente Oliveira e Carmo, que em Diu dirige a lancha Vega contra um cruzador indiano e repele vários ataques aéreos. Morreria ao lado de dois outros militares. Ao final da noite de 18 de Dezembro, a bandeira branca esvoaçava em Pangim. A invasão salda-se na morte de 20 portugueses e 21 indianos.
Militares castigados
O sangue derramado não seria suficiente para Salazar escrever a sua narrativa. Recorre à mentira. Em Lisboa, os jornais dão conta da morte de mais de mil portugueses. Os títulos galvanizam a opinião pública em torno do regime, mas deixam milhares de famílias de coração nas mãos. Estas só saberiam do destino dos seus filhos meses depois. Os militares portugueses foram aprisionados em campos de concentração indianos. No outro lado do Índico, Portugal retaliava com a detenção de 12.000 indianos em Moçambique. A troca dos reféns acontece a partir de Maio de 1962. O regresso a Lisboa é discreto e inglório. Desembarcam sob a mira das armas da Polícia Militar, são colocados em comboios e encaminhados para as respectivas unidades mobilizadoras. Só depois voltam a casa, cinco meses após a notícia de uma possível morte em terra distante. Dez oficiais do Exército seriam demitidos, cinco reformados compulsivamente e nove suspensos por seis meses.
Goa seria rapidamente esquecida perante o agravamento do conflito em África. Os 463 anos de domínio português na Índia terminariam como uma nota menor da história do Estado Novo, cumpre-se este domingo (18.12.2011) 50 anos.
2 comentários:
Como obteve informações sobre o grupo de comandos os audazes?
Viva J. Santos! Obrigado pela pergunta. Eis a resposta: Para desenvolver o tema "Os Comandos nos três teatros da Guerra do Ultramar", que atingiram os 200 episódios, incluindo o referente ao Grupo "Os Audazes", não só recolhi informações nos Arquivo Geral do Exército, Arquivo Histórico Militar, Arquivo da Defesa Nacional, Biblioteca do Exército, como na própria Associação de Comandos e nos inúmeros contactos com elementos que fizeram parte integrante dos Comandos, aos quais, mais uma vez, agradeço a disponibilidade em me transmitirem as histórias e episódios que me facultaram para que este trabalho de tributo aos Comandos atingisse o ponto mais elevado que sempre pretendi: rigor, história e memória. Saudações.
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